É infamante celebrar um movimento que matou, torturou, exilou, sequestrou pessoas, fechou o Congresso, censurou a imprensa e mergulhou o país no caos e no obscurantismo. Trata-se de um insulto aos brasileiros e às famílias de mortos e desaparecidos. É também mais uma comichão autoritária que prefere desprezar a história e seus legados.
As reações ao desatino explodiram nos principais jornais do mundo e desencadearam duros protestos das instituições. O Ministério Público fez uma severa condenação e a Defensoria Pública da União provocou a Justiça a fim de proibir a insinuada comemoração. Festejar o banho de sangue, a opressão e a destruição de vidas e famílias, beira a insânia.
O Congresso, imprensa e Judiciário foram as vítimas preferenciais das arbitrariedades. Em 17 Atos Institucionais os direitos políticos foram suspensos, houve intervenções no STF e arbitrou-se as eleições indiretas nos estados. A síntese veio no pacote do AI-5. Ele fechou o Congresso, cassou mandatos, suspendeu o Habeas Corpus e baixou a censura. Devemos aprender, nunca nos orgulharmos de um passado tão funesto. O Parlamento, em sua ampla maioria, não concorda com a celebração e, por isso, vem fazendo revisões históricas desse período.
No dia 21 de novembro de 2013 o Congresso Nacional aprovou uma proposta memorável que reconciliou o Brasil com a verdade e apagou uma inverdade da história do país. O projeto anulou a sessão de 2 de abril de 1964, na qual foi declarado vago o cargo de presidente da República. O presidente João Goulart, como se sabe, foi deposto quando ainda se encontrava em solo brasileiro tentando resistir ao golpe com o apoio do III Exército.
“O Sr. Presidente da República deixou a sede do governo. Deixou a nação acéfala numa hora gravíssima da vida brasileira em que é mister que o chefe de Estado permaneça à frente do seu governo. O Sr. Presidente da República abandonou o governo”, anunciou debaixo de protestos e muito tumulto a voz estrepitosa do então presidente do Congresso, Auro Moura Andrade.
Mais do que justiça, a anulação daquela sessão é a exumação da própria história brasileira. Recusamos uma falsidade que perdurou por 49 anos e nos reencontramos oficialmente com a verdade. Afinal, a mentira é tão nociva quanto o silêncio sobre ela. Anular a sessão, sem apagá-la da memória, é reconhecer que João Goulart foi deposto e, mais grave, com a participação direta do Congresso Nacional. É afirmar que ele foi vítima de uma ilegalidade. É um pedido público de desculpas ao país, aos seus cidadãos, ao presidente João Goulart e sua família.
Não se pretendeu retroagir no tempo ou manufaturar uma nova história, reescrevendo-a ao gosto do momento. Versão não se confunde com História. A versão, calçada na mentira, é efêmera e inconsistente, já a verdade é eterna e sólida, como bem definiu Francis Bacon: “A verdade é filha do tempo, não da autoridade.”
A História desconhece ponto final, especialmente se ela foi forjada na falsidade e, nesse caso, ela precisa mesmo ser reescrita. Se não podemos revogar páginas da história, devemos invalidar a máxima de Joseph Goebbels de que “de tanto se repetir uma mentira, ela acaba se transformando em verdade”. Nações não são erguidas em cima de falsidades. Ao contrário, o alicerce mais robusto da democracia é a verdade.
Não podemos revogar muitas páginas da nossa História, mas sempre que preciso devemos reformá-las a fim de iluminar as futuras gerações. Vamos repor a verdade sempre que necessário, como fiz quando presidi a sessão que anulou a farsa de 64. Vamos resistir sempre aos fundamentalistas que não convivem com as diferenças. A lógica do senso único é inservível à democracia. Diante de disparates, o Congresso Nacional estará atento e saberá reagir como bem definiu Ulysses Guimarães ao promulgar a Constituição: “A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram”.